sexta-feira, 31 de março de 2017






Arte do amigo Natanael Lomgo, o Nata

 

'Voa vida'


A dor incomoda. Qualquer tipo de dor. Sinto a mente jovem encarcerada dentro da velha armadura, que cada vez mais escancara a erosão do tempo. Meu corpo dói com o ranger das engrenagens. Não há como discordar: a vida é sábia, porém célere, e por vezes demoramos a nos dar conta que tudo é passageiro, menos o motorista e o cobrador.

O incomodo constatar que “la nave vá” nos faz buscar lenitivos por dias melhores. O cérebro pede asas para voar; já o corpo pede uma sombra para recostar o dorso exausto. Que triste antagonismo.
Guiado pelo instinto da sobrevivência passei a perseguir pegadas de passos cada vez mais rápidos a minha frente que alimentassem o fôlego de viver melhor. Assim já a bom tempo corro devagar – quase todos os dias - com a pressa de quem nunca teve pressa.
 

Mas a toda nova atitude sempre existe a sombra do imponderável, artimanhas do destino que te seduzem a desafiá-lo, e ele, sábio e inflexível, te induz ao erro. Acelerei sem poder acelerar. Duas quedas dominicais inesperadas, em sequência, fora do cardápio do manual da boa saúde – parece até mandinga encomendada – e já a três domingos me posto sentado vendo a banda passar.
A dor no ombro direito lesionado é lancinante. Cirurgia talvez. Como seria bom se toda vez que tomássemos uma atitude errada ou mal intencionada, o cérebro doesse como dói minha junta, alertando para o perigo do movimento proibido. A lesão na alavanca do braço direito, aquele que levanta a espada, tolhe momentaneamente o ato guerreiro. Mas nada na vida acontece por acaso. Existem momentos na boa guerra onde é prudente recuar, se aquietar e escutar o que diz o sussurro do vento. Olhar ao redor e buscar esperançoso, no horizonte da manhã que se descortina, o primeiro raio de sol.


Brincando com minhas duas netas, que ignoram o dodói do vovô, olho em oração para os ventres de minhas filhas. Lá estão guardados minha nova princesa e os dois guerreiros que virão ao mundo para dar seqüência às gerações que se sucedem. Em breve um quinteto angelical que peço à luz divina- todos os dias- que os proteja e abençoe. Terão suas vidas, terão seus arbítrios, mas por hora é nossa missão cantar as cantigas de ninar que os acalmam e os fazem adormecer em paz.


Repentinamente me vejo só na sala. Olho meu toca discos que a tempo não faz girar seu prato. Na prateleira encontro o LP de 1982 “Voa a vida” do Sergio Sá. Cheira a guardado e me faz viajar aos meus 30 anos. Entorpecido ouço os versos finais da canção “Represa” que diz: ‘E assim vou enfrentando toda loucura de ainda não me conhecer. Minhas revoltas, meus fracassos, minhas dúvidas. As ventanias, o sol quente, os temporais. Mas vale viver pela luta da correnteza, vale viver contra o maciço da represa... ’
 

Momento sem espaço para a dor. Vida leve, vida breve. (artigo publicado há exato 1 ano, que o Picôco adorou e ligou pra comentar num papo longo e gostoso).

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